O vazio que habita o Distrito Federal - Correio Braziliense

O vazio que habita o Distrito Federal - Correio Braziliense
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Helena Mader
Correio Braziliense

O deficit habitacional atinge mais de 125 mil brasilienses e aumenta a cada ano, apesar da vastidão de terras públicas na região da capital do país. Apenas entre 2008 e 2014, a deficiência cresceu 25%, o que desafia o governo a reformular a política do setor

Conquistar a casa própria é a grande ambição da operadora de caixa Michelle Bezerra Pereira, 37 anos. Mãe de dois filhos, ela enfrentou neste ano o pesadelo de ver o pequeno barraco irregular no Setor Habitacional Sol Nascente, em Ceilândia, derrubado pela fiscalização. Catou os poucos pertences e se instalou com o marido e as crianças em uma casa simples no mesmo bairro, alugada por R$ 550.

Michelle e o marido ganham, juntos, dois salários mínimos e gastam mais de 30% da renda com moradia. Ela faz parte de um grupo de mais de 125 mil brasilienses que sofrem com o deficit habitacional. Brasília tem a maior renda per capita do país e um grande estoque de terras públicas, mas os registros oficiais mostram que o problema se agrava. Entre 2008 e 2014, a carência cresceu 25%: em apenas seis anos, cerca de 25 mil pessoas passaram a fazer parte das estatísticas.

 
O deficit habitacional é dividido em quatro modalidades (leia História de problemas). A primeira é a precariedade. Pessoas que não pagam aluguel, mas vivem em barracos sem a mínima infraestrutura urbana, devem ser incluídas na lista de demanda por moradia. O segundo eixo é a coabitação, quando parentes ou amigos dividem o imóvel, por questões financeiras. Também há o problema do adensamento excessivo de moradias alugadas. Isso ocorre em situações em que há mais de três pessoas vivendo no mesmo cômodo de um imóvel que não é próprio.
 
O último ponto é o ônus excessivo do aluguel. Isso ocorre quando a locação compromete mais de 30% dos vencimentos de pessoas com renda familiar de três salários mínimos — caso de Michelle Pereira. “Estou inscrita na fila de espera do governo, mas nunca me chamaram para receber um lote. Espero há mais de cinco anos, já estou perdendo as esperanças”, conta a operadora de caixa, que vive em um imóvel construído em uma rua sem asfalto e iluminação do Sol Nascente. “Quando derrubaram o meu barraco, achei que conseguiria alguma oportunidade para comprar a casa própria. Hoje, eu trabalho praticamente só para pagar aluguel”, lamenta.
 
As regras da política habitacional do Distrito Federal foram definidas por uma legislação de 2006. Entre as diretrizes estabelecidas há 10 anos, estão a obrigatoriedade de que 40% dos imóveis oferecidos à população beneficiem inscritos na lista da Companhia de Desenvolvimento Habitacional (Codhab); 40% sejam destinados a cooperativas e associações habitacionais; e 20%, a pessoas com grande vulnerabilidade, como deficientes físicos.
 
Desde 2015, o governo faz uma limpa na lista da Codhab. Foram excluídas pessoas que não se enquadram nos critérios legais ou que foram contempladas com a casa própria. “Graças a esse trabalho, o número de inscritos caiu de 180 mil para 158 mil. Do total, 80% se inscreveram individualmente e 20% fizeram a inscrição por meio de entidades, como cooperativas”, explica o presidente da Codhab, Gilson Paranhos.
 
Apesar da queda do ritmo de crescimento populacional nas últimas décadas, o número de habitantes do DF ainda aumenta, em média, 2,3% a cada ano. Além da demanda reprimida, novos candangos vão em busca de um teto. Mas a oferta de imóveis pelo governo para os inscritos no programa habitacional não chega nem perto de atender a lista de espera. Entre 2011 e 2014, 11 mil famílias saíram contempladas. No ano passado, o GDF entregou 5.701 unidades nos empreendimentos Parque do Riacho, Paranoá Parque, Estilo Santa Maria e Jardins Mangueiral.
 
Lixão 
 
O catador de lixo Elias Oliveira de Lima, 35, mora com a mulher e cinco filhos em um barraco de madeirite de 30m², sem água encanada, esgoto, asfalto ou iluminação. Mesmo diante da precariedade, ele não se inscreveu na lista da Codhab para tentar melhorar de vida. “Nem perdi o meu tempo. Nunca tem opções de casa para quem é muito pobre. As prestações do Minha Casa, Minha Vida são pesadas. Não é coisa para mim”, explica Elias.
 
Há um ano e meio, ele deixou Luziânia com a família para tentar a sorte na capital federal. Comprou um lote na invasão da Chácara Santa Luzia, ao lado do Lixão da Estrutural, por apenas R$ 200. Gastou mais R$ 700 para erguer o barraco, decorado com bandeirinhas do Brasil. “Eu queria muito ter uma casa fixa para ficar com os meninos. Aqui, o teto é nosso, mas a gente sofre com o esgoto e com a poeira”.
 
O secretário de Gestão do Território e Habitação, Thiago de Andrade, explica que o problema do ônus excessivo do aluguel, proporcionalmente à renda das famílias, cresceu nos últimos anos por causa da forte valorização imobiliária registrada no DF, entre 2007 e 2013. “A precariedade caiu, porque as pessoas tiveram acesso a crédito e puderam melhorar suas habitações. Esse problema, hoje, se concentra principalmente na região da Estrutural, por causa da Santa Luzia, e em parte da Ceilândia, além da área rural”, diz o secretário.

Em busca de uma política
 
O geógrafo Aldo Paviani, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) e um dos maiores especialistas em planejamento urbano da cidade, diz que o agravamento do problema pode ser explicado pela inexistência de um programa habitacional consistente no Distrito Federal. Atualmente à frente da Diretoria de Estudos Urbanos e Ambientais da Codeplan, Paviani lembra que o desafio é beneficiar cidadãos com renda de até três salários mínimos, que ficaram às margens do Minha Casa, Minha Vida.
 
“A cidade necessita de uma política habitacional de Estado, não de governo. É preciso traçar um plano de longa duração, com planejamento de 20, 30 anos, priorizando sempre que as pessoas possam trabalhar perto do local de moradia”, comenta o especialista. Ele lembra que a maioria dos municípios goianos do Entorno, como Águas Lindas e Cidade Ocidental, surgiram “como válvulas de escape” para a falta de habitação popular na capital federal. “Outro problema agravado pela falta de uma política habitacional foi a grilagem. Sem opções de moradia, muitos se renderam às propostas para a compra de lotes baratos e irregulares”, acrescenta Paviani.
 
A desempregada Clélia Santos Brasil, 45 anos, é parte dessa realidade. Ela morava de aluguel no Areal, mas, depois do divórcio, ficou sem condições de arcar com esse custo e, hoje, vive em um terreno ilegal na Estrutural. Mãe de oito filhos, ela nasceu no Distrito Federal, porém nunca conseguiu comprar a casa própria. “Vivo de bicos, lavo roupa de vizinhos e faço faxinas. Como é que vou poder comprar um apartamento financiado?”, questiona. Clélia está inscrita na lista de espera por moradia há mais de uma década. 
 
Reforma na política habitacional
 
Para tentar resolver o problema de deficit de casas do Distrito Federal, o GDF lançará, no próximo sábado, o Habita Brasília. O programa vai se estruturar na venda de lotes com valor subsidiado e na participação da iniciativa privada 
 
A distribuição gratuita de lotes não urbanizados motivou o surgimento de uma geração de políticos e elegeu dezenas de candidatos, mas não resolveu o problema do deficit habitacional na capital do Brasil. Pelo contrário: a oferta indiscriminada de terrenos atraiu ainda mais gente em busca da casa própria e fez disparar a fila de espera por uma moradia. Há cerca de seis anos, a política habitacional do DF mudou e a entrega de lotes foi definitivamente encerrada. O GDF passou a enfocar o programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal.
 
A ideia era financiar imóveis prontos com condições vantajosas à população de baixa renda. Mas, desde então, o deficit cresceu 25%, especialmente entre as famílias mais pobres, que não conseguiram acesso ao crédito. Agora, o governo lançará mais uma iniciativa para tentar mitigar o problema. O Habita Brasília, novo programa oficial de moradias, será anunciado no próximo sábado pelo governador Rodrigo Rollemberg.
 
O novo programa tem cinco frentes de atuação (veja Em busca da casa própria). A produção de unidades habitacionais, prevista no Minha Casa, Minha Vida e no Morar Bem, do GDF, será mantida, mas deixará de ser a única política de moradia. Uma das novidades é a venda de lotes urbanizados com valor subsidiado. O objetivo é fazer parcelamentos em áreas com infraestrutura consolidada e vender os terrenos a preços que não tragam lucro ao governo, mas que remunerem o valor da gleba, os investimentos para urbanizar a região e os custos com licenciamento, para que não haja prejuízos aos cofres públicos. Os lotes serão financiados com prestações baixas, e os compradores terão apoio na construção das casas.
 
Essa assistência técnica é o terceiro eixo da nova política habitacional. O governo quer oferecer assessoria profissional e projetos arquitetônicos e de engenharia para que os futuros moradores, sozinhos ou em esquema de mutirão, construam as residências com segurança e seguindo padrões. O GDF abrirá 10 postos de atendimento em várias cidades para que especialistas prestem esse serviço.

Há, ainda, outras duas novidades, que envolvem a participação da iniciativa privada. A primeira delas consiste em uma parceria com empresas da construção civil. A ideia é que os empreiteiros ofereçam apartamentos prontos ou em fase final de construção a pessoas inscritas na Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal (Codhab). O governo poderia subsidiar parte do imóvel, fazendo o pagamento por meio de cartas de crédito, por exemplo. No caso de um apartamento orçado em R$ 225 mil, por exemplo, que é o teto do valor permitido para imóveis do Minha Casa, Minha Vida, o GDF poderia repassar à empresa R$ 25 mil, para que o cadastrado compre o apartamento com desconto, por R$ 200 mil. Para essa modalidade, é preciso fazer ajustes à legislação e definir detalhes de como será feito o pagamento do subsídio.
 
A última novidade do Habita Brasília é a locação social. Essa modalidade é distinta do pagamento do aluguel social, que assegura o repasse de R$ 600 mensais para famílias desalojadas por conta de derrubadas ou desmoronamentos, por exemplo. Essa frente da nova política habitacional prevê a construção de empreendimentos pela iniciativa privada em modelo de permuta. O GDF cede o terreno, os empresários fazem a edificação e podem explorar parte dos imóveis, cedendo outros para serem alugados a preços subsidiados.
 
Priorizar

O secretário de Gestão do Território, Thiago de Andrade, explica que o Habita Brasília surgiu a partir da necessidade de diversificar soluções de moradia. “Há um esgotamento do modelo proposto pelo programa Minha Casa, Minha Vida. É preciso buscar essa diversificação, porque a ideia é fazer cidades, não apenas casas”, afirma o secretário. Ele estima que, até o fim de 2018, é possível chegar ao patamar de 30 mil unidades entregues.
 
O presidente da Codhab, Gilson Paranhos, também faz críticas ao enfoque excessivo na iniciativa. “O Minha Casa, Minha Vida não foi pensado apenas com o objetivo de combater o deficit habitacional, mas para atender a construção civil e movimentar a economia”, comenta Paranhos.
 
A legislação habitacional do Distrito Federal permite a inclusão de pessoas com renda de até 12 salários mínimos nos programas de governo para moradia. “Mas, se levarmos em conta essa faixa, mais de 80% da população teria direito a participar dos programas habitacionais. Por isso, é preciso priorizar as iniciativas para contemplar as pessoas nas faixas mais baixas de renda”, justifica Thiago. Hoje, cerca de 30% da população do DF está enquadrada na faixa 1 do Minha Casa, Minha Vida, com renda de até R$ 1,8 mil.

Enfoque
 
O público-alvo dessa iniciativa são pessoas acima de 60 anos, em situação de rua, que vivem em áreas de risco ou que gastam um percentual alto da renda com aluguel. A gestão condominial e dos contratos de locação será feita por meio de concessão. A ideia é fazer contratos de 48 meses. Em uma simulação feita pelo GDF em Santa Maria, apartamentos de 1 quarto alugados por R$ 500 poderiam ser locados pela metade do preço.

Elogios à iniciativa
 
O vice-presidente do Sindicato das Indústrias da Construção Civil, João Accioly, diz que o setor comemorou a iniciativa. Ele acredita que o novo programa ajudará a movimentar o segmento, fortemente atingido pela crise econômica. “Recebemos o lançamento do Habita Brasília com bons olhos e estamos ajudando a construir um formato que compatibilize todos os interesses”, explica. Segundo ele, o setor imobiliário tem um estoque de unidades prontas ou em fase final de construção, que pode se enquadrar nas faixas de financiamento do programa. “Com o subsídio da Caixa Econômica e do Habita Brasília, um imóvel de R$ 220 mil pode sair por R$ 180 mil para o mutuário. Isso é benéfico para o governo, para a iniciativa privada e para quem vai conquistar a casa própria”, comenta.
 
As cidades com maior número de imóveis disponíveis são: Samambaia, Ceilândia, Santa Maria e Gama. A princípio, os empresários não devem construir empreendimentos apenas com foco nesse segmento do Habita Brasília. “Mas, se as coisas se desenvolverem de forma positiva, é possível que haja interesse em produzir ainda mais imóveis para atender essa demanda”, acrescenta João Accioly. “O desafio do governo, agora, está na construção do modelo desse subsídio complementar, para encontrar o formato ideal e seguro.” O representante do setor produtivo conta que também deve haver interesse dos empresários pelo modelo de locação social. “A gente já trabalha no mercado com esse modelo de permuta. Vamos aguardar para ver que terrenos serão ofertados, para saber se serão investimentos interessantes”, finaliza João Accioly.
 
A participação de cooperativas habitacionais na política de moradias do DF é prevista em lei desde 2006. Mas as entidades ficam com a imagem arranhada a cada denúncia envolvendo a exploração de pessoas na fila de espera da casa própria. No último escândalo, revelado no mês passado, pela Operação Clã, a Polícia Federal fez a condução coercitiva de presidentes de cooperativas, empresários e de políticos, como o ex-secretário Geraldo Magela e o ex-presidente da Codhab Rafael de Oliveira. Eles negam qualquer irregularidade.
 
Remédio
 
O presidente da Associação dos Inquilinos de Ceilândia, Epaminondas da Silva, uma das primeiras entidades habitacionais criadas no Distrito Federal, apoia a criação do programa Habita Brasília, mas cobra participação dessas organizações. Ele participou de uma reunião na Codhab, na semana passada, para a apresentação prévia da iniciativa. “Qualquer trabalho para reduzir o deficit habitacional é bem-vindo. A gente defende um modelo verticalizado, com a oferta de apartamentos para a venda. Já a ideia da locação social não é muito vantajosa. É como um remédio que tira a dor de cabeça, mas não cura a doença. As pessoas querem casa com escritura para resolver definitivamente o problema”, comenta.
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