Wellington Ramalhoso
Portal UOL
Programa habitacional criado na gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o Minha Casa, Minha Vida virou motivo de polêmicas quando o presidente interino, Michel Temer (PMDB), assumiu o governo. Integrantes do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) chegaram a ocupar o saguão do prédio da Secretaria da Presidência da República, na avenida Paulista, em São Paulo, para exigir que o novo ministro das Cidades, Bruno Araújo (PSDB), voltasse atrás da decisão de revogar portaria do governo Dilma Rousseff (PT) que autorizava a contratação da construção novas unidades.
A portaria determinou a construção de até 11.250 unidades destinadas à faixa mais baixa de renda — de até R$ 1.800 por mês. Elas fazem parte da modalidade Entidades, em que associações e cooperativas administram a obra.
Lançado em 2009, o Minha Casa é o maior programa habitacional do país nos últimos 30 anos. A terceira fase pode fazê-lo superar os números do BNH (Banco Nacional da Habitação), criado durante a ditadura.
O Minha Casa foi concebido para dinamizar a construção civil brasileira e combater os efeitos da crise econômica internacional iniciada em 2008. Também se tornou um instrumento para reduzir o deficit habitacional do país, mas não escapa de críticas de pesquisadores que estudam seus empreendimentos.
Lançado em 2015 pela editora Letra Capital, o livro "Minha Casa… E a Minha Cidade?" é considerado o principal estudo sobre o programa. A publicação foi organizada por três professores de Arquitetura e Urbanismo da USP (Universidade de São Paulo) — Caio Santo Amore, Lúcia Zanin Shimbo e Maria Beatriz Cruz Rufino — e avalia projetos da primeira fase do Minha Casa em seis Estados. A obra aponta alguns aspectos positivos, mas principalmente falhas e problemas do programa.
"De maneira geral, os altos índices de satisfação com a propriedade privada e regular da moradia, contrastam com percepções de piora no acesso aos transportes, comércios e serviços e relatos sobre o medo das mães de exporem suas crianças ao convívio social nos espaços coletivos do condomínio", comenta Maria Beatriz Cruz Rufino, professora da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo), na publicação.
Questionado se leva em consideração as observações feitas pelos pesquisadores que produziram o livro, o Ministério das Cidades respondeu apenas que "segue a legislação do Minha Casa, Minha Vida".
Com base no livro e em números do Ministério das Cidades, da Fundação João Pinheiro e da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), o UOL levantou aspectos positivos e negativos do programa. Confira abaixo:
Pontos positivos – Tamanho e velocidade do programa
Lançado em 2009, o programa contratou 4,2 milhões de unidades habitacionais até dia 30 de abril de 2016, de acordo com o Ministério das Cidades. Desse total, foram entregues 2,7 milhões de moradias. Ainda segundo a pasta, o total de investimentos em sete anos já passou de R$ 300 bilhões.
Esses números fazem do Minha Casa, Minha Vida o maior programa habitacional do país nos últimos 30 anos e o deixam perto de alcançar e superar a produção do sistema gerido pelo antigo BNH (Banco Nacional da Habitação), criado pela ditadura militar. O BNH financiou 4,5 milhões de moradias, mas só chegou a essa marca com 22 anos de existência.
Segundo Lúcia Shimbo, professora do IAU-USP (Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo — campus São Carlos), as construtoras que atuam no programa passaram a contar com mão de obra própria em vez de trabalhar com operários terceirizados por empreitada, o que agilizou a produção.
Redução do deficit habitacional
De acordo com a Fundação João Pinheiro, o Brasil tinha um deficit habitacional de praticamente 6 milhões de unidades em 2009. Em seu estudo mais recente sobre o tema, apontou que o deficit era de 5,8 milhões de moradias em 2013. Ou seja, a carência de unidades habitacionais caiu 2,5% em quatro anos. No mesmo período, a população brasileira cresceu 3,9%.
Um estudo da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) divulgado no começo deste ano também apontou uma diminuição do déficit entre 2010 e 2014 e destacou a importância do Minha Casa, Minha Vida para essa redução.
Estudos de pesquisadores que elaboraram o livro "Minha Casa… E a Minha Cidade?" indicam, porém, que o programa não vem atuando com eficácia no combate ao deficit porque a oferta de imóveis nem sempre atende a população mais carente, seja pela localização ou pelo preço das unidades construídas. Além disso, os pesquisadores afirmam que a construção de casas não deveria ser o único instrumento para diminuir o deficit.
Um dos principais méritos do Minha Casa, Minha Vida é resolver um problema histórico e de difícil solução para os programas habitacionais. Ele consegue dar à população mais pobre o acesso ao imóvel próprio. A faixa 1 de financiamento, que atende os mais pobres, permite a participação de famílias com renda mensal bruta de até R$ 1.800.
Nessa faixa, até 90% do valor do imóvel pode ser subsidiado pelo governo. O valor que cabe ao beneficiário tem de ser pago em até 120 prestações mensais de no máximo R$ 270 sem a cobrança de juros. Na modalidade Entidades, as famílias podem se organizar em associações ou cooperativas para construir as unidades habitacionais.
Os financiamentos do programa, feitos via Caixa Econômica Federal, são sustentados por recursos do FAR (Fundo de Arrendamento Residencial) e do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço). "Pela primeira vez na política brasileira, se destinou tanto recurso orçamentário para subsidiar famílias para adquirirem a casa própria", afirmou ao UOL a professora Lúcia Shimbo.
Pontos negativos – Localização dos terrenos
A Caixa Econômica e as construtoras são as protagonistas do Minha Casa, Minha Vida. "A instituição financeira Caixa, por um lado, e as empresas, por outro lado, ganham centralidade em detrimento dos órgãos e instituições responsáveis pelas políticas urbanas e habitacionais", observa Maria Beatriz Cruz Rufino no livro "Minha Casa… E a Minha Cidade?".
Muitas vezes, são as próprias construtoras que decidem a localização do empreendimento. Orientadas pela lógica financeira, elas constroem em terras baratas situadas em locais periféricos e até em antigas áreas rurais, acessíveis por via única — às vezes, inclusive, somente por rodovia –, criando "frentes pioneiras" de urbanização. Em muitos desses casos, as moradias ficam distantes de equipamentos que oferecem serviços essenciais como educação e saúde, de sistemas de transporte e de locais de empregos.
Ou seja, a produção habitacional não é feita de forma integrada à cidade. Isso resulta em uma série de dificuldades para os moradores, que passam a ter de gastar mais tempo e dinheiro nos deslocamentos, e para o poder público, que precisa estender a estrutura de seus serviços. Nos casos em que as prefeituras participam da escolha do terreno, os problemas citados acima tendem a ser minimizados.
Padronização das construções
O Minha Casa, Minha Vida repete alguns defeitos dos conjuntos construídos nos tempos do BNH. Há, por exemplo, uma padronização de projetos de casas e prédios construídos. O padrão é uma unidade com dois quartos, o que dificulta o atendimento de famílias maiores. Com a padronização, as construtoras podem potencializar seus lucros.
Os pesquisadores também observam que as áreas públicas são pouco valorizadas nos projetos dos condomínios. "Os espaços não construídos são efetivamente "o que sobrou", são os espaços entre os blocos, destinados à consolidação do sistema viário e de estacionamentos, numa clara valorização do carro em detrimento dos espaços de socialização", aponta Maria Beatriz no livro.
Além disso, a grande maioria dos conjuntos é destinada somente ao uso residencial, sem espaço para comércio e serviços. Isso, segundo a professora da USP, "fez emergir em numerosas situações um setor terciário informal no entorno dos empreendimentos ou improvisados nas próprias unidades, com vistas a oferecer produtos básicos aos moradores, ao mesmo tempo que se consolida como alternativa de geração de renda e sobrevivência sob um grau de absoluta precariedade".
"O predomínio da forma condomínio, a precariedade dos espaços coletivos e a ausência de espaços públicos que estimulem a integração e sociabilidade nos empreendimentos e com a vizinhança reforçam ainda mais uma urbanização privatizada que tende a exacerbar a segregação e guetificação segregação dos mais pobres na cidade", prossegue a pesquisadora.
Neste aspecto, a modalidade Entidades, que permite a participação dos moradores na definição do projeto, apresenta vantagens em relação ao modelo tradicional.
Dificuldade para se sustentar
Beneficiários de renda mais baixa têm dificuldade para se sustentar depois da mudança para o imóvel próprio. O acesso ao financiamento e a posse da moradia não são suficientes para estabilizar sua situação financeira. A nova vida também traz novos gastos. Quem vem de assentamentos informais passa a ter de arcar com contas decorrentes da formalização, como as taxas de água e luz.
Quem passa a morar em um conjunto também passa a arcar com uma conta nova: a do condomínio. "Em vários empreendimentos investigados constatou-se que a taxa de condomínio representa valores superiores ao pagamento da parcela da moradia que, como já referido, foi amplamente subsidiada", destaca Maria Beatriz em "Minha Casa… E a Minha Cidade?".
Segundo a pesquisadora, a investigação de casos particulares mostrou que a população proveniente de antigas áreas de risco é a que mais enfrenta dificuldades "de arcar com os custos relacionados à moradia formal e ao condomínio, passando em vários casos a ser estigmatizada pelos demais moradores dos novos conjuntos".
Essas dificuldades levam ao abandono ou venda de moradias e complicam a situação financeira do condomínio. "As consequências desse processo de endividamento podem ser vistas tanto na insustentabilidade da gestão de alguns dos condomínios como na dificuldade de permanência das famílias mais vulneráveis na nova moradia (…) A análise preliminar dos questionários revela ainda a maior frequência de vendas irregulares de unidades entre essas famílias mais vulneráveis."
Cadastros sem transparência e ação do tráfico
Segundo a professora da USP, os pesquisadores encontraram dificuldades para conferir os cadastros de beneficiários do programa montados pelas prefeituras. "Com relação ao processo de definição da demanda foram evidenciadas, em diversas situações, a falta de transparência na construção dos cadastros e nos processos de sorteios e a demora na entrega da lista dos beneficiários para a Caixa. Tais problemas tendem a dificultar a execução do trabalho social e a facilitar a ação do tráfico e de milícias, que passaram a controlar vários empreendimentos", afirma no livro.
"Pode-se dizer, de maneira geral, que a atuação dos municípios foi pouco efetiva na realização do trabalho social e da fiscalização após a entrega das chaves."
De acordo com os pesquisadores, o tráfico e a milícia, ao dominar determinados conjuntos do Minha Casa, também se beneficiam de dois fatores listados acima: a localização periférica dos condomínios e a vulnerabilidade socioeconômica dos moradores.