Ana Paula Ribeiro
Geralda Doca
O Globo
Índice de cancelamentos chega a 43,4% em 2016; governo estuda fixar multa de 25% sobre valor
O avanço do número de distratos nas operações de compra de imóveis novos em todo o país fez aumentar a pressão do setor da construção para que o governo regulamente direitos e obrigações (penalidades) para os casos de desistência do comprador antes da entrega das chaves. O índice de cancelamentos, que não chegava a 20% até o início de 2014, começou a crescer de forma expressiva desde então e chegou a 43,4% no ano passado, concentrado principalmente nas compras de imóveis com valores entre R$ 300 mil e R$ 800 mil. A justificativa das incorporadoras para a urgência da regulação é que, com os cancelamentos em níveis elevados e as vendas fracas, as empresas ficam sem garantias suficientes para tomar crédito, o que acarreta atrasos em obras de novos empreendimentos.
No esforço de impulsionar o setor da construção, a equipe econômica trabalha para anunciar ainda esta semana uma solução para o problema dos distratos. Os detalhes ainda sendo negociados com a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), vinculada ao Ministério da Justiça, mas a ideia é fixar um percentual entre 20% e 25% do total pago pelo comprador, que poderá ser retido pela construtora, mais a taxa da corretagem. Já a Associação Brasileira das Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) e outras entidades do setor, que desde o início do ano passado discutem com os ministérios do Planejamento e da Justiça a regulamentação de regras para esses casos, têm outra proposta: multas de 10% para os imóveis da faixa do Minha Casa Minha Vida (de até R$ 240 mil); de 12% para as unidades habitacionais que se encaixam nas regras do Sistema Financeiro de Habitação (SFH), ou seja, até R$ 950 mil; e de 14% para os de alto padrão. Esses percentuais seriam aplicados sobre o valor total do imóvel.
No ano passado, até novembro, cerca de 40,9 mil contratos de venda foram cancelados por distrato, o que equivale a 43,4% do total de imóveis vendidos no período. Na prática, a cada cem imóveis comercializados na planta, em quase 44 os consumidores não tiveram condições ou não quiseram levar os contratos de compra adiante. A elevação do índice de distratos já era esperada em razão do aumento do desemprego, mas essa disparada, segundo executivos do setor da construção, foi desencadeada principalmente por investidores que compraram imóveis pensando em sua valorização e, como o mercado deu uma estagnada, desistiram do negócio temendo perder dinheiro.
Pagamento também por atraso na obra
Hoje, o comprador geralmente paga entre 25% e 30% do valor do imóvel novo até a entrega das chaves. Os distratos ocorrem justamente antes de o comprador receber as chaves. Por isso, na maior parte dos casos, as incorporadoras estabelecem multas contratuais de 50% a 60% do valor já pago pelo comprador, diz Marcelo Tapai, advogado especialista em direito imobiliário. Alegando tratar-se de cláusula abusiva, os compradores recorrem à Justiça, cujos juízes de primeira instância geralmente estabelecem multas menores, entre 10% e 15% do valor já pago.
A proposta do governo prevê duas travas para a definição da quantia que as empresas poderão reter do cliente: o valor não pode exceder 10% do valor do contrato, nem 80% do valor pago pelo cliente. Em contrapartida, as empresas que atrasarem a entrega da obra em mais de 180 dias poderão ser multadas em 0,25% do valor contratado. Acima desse prazo, a multa dobra para 0,50%.
Para se ter uma ideia do impacto dessas novas regras, num contrato de R$ 500 mil, por exemplo, e taxa de corretagem de 6%, se o cliente pagou R$ 50 mil e desistiu da compra, ele terá de deixar nas mãos da empresa R$ 30 mil só de comissão para o vendedor; sobre os R$ 20 mil restantes, seria aplicado o percentual fixado. Desse forma, a empresa poderá ficar com R$ 35 mil, e o comprador receberá de volta R$ 15 mil. O valor retido está abaixo dos 10% do valor do imóvel e dos 80% do valor desembolsado.
Os clientes do Minha Casa Minha Vida não deverão ser afetados. A proposta de regulamentação prevê tratamento diferenciado por tipo de imóvel, se é residencial ou comercial.
Para as incorporadoras, a regulamentação dará maior previsibilidade às empresas do setor e evitará disputas na Justiça, que são recorrentes. Claudio Carvalho, vice-presidente da Abrainc, explica que esses cancelamentos reduzem a previsão de fluxo de recursos para as construtoras, o que torna mais difícil o acesso ao crédito.
— Se as vendas não estão dentro do cronograma, os bancos começam a parar com o crédito à produção. A concessão de crédito está muito mais restrita, e isso pode causar paralisação de obra nas construtoras que não têm caixa próprio disponível — diz.
Flavio Amary, presidente do Sindicato da Habitação de São Paulo (Secovi-SP), afirma que os distratos causam um desequilíbrio no mercado, pois, além dos gastos que as incorporadoras já tiveram, como os de corretagem, o fluxo de caixa do projeto é afetado, o que pode prejudicar as outras pessoas que compraram unidades no mesmo empreendimento.
— Muitos investidores desistem do imóvel porque não ocorreu a valorização esperada. Isso não é justo e não acontece em outros setores. É uma decisão unilateral do comprador, tomada quando ele percebe que o negócio deixou de ser bom para ele — disse.
Na visão das incorporadoras, deve ser considerado o valor total porque os custos de venda, como corretagem e divulgação do empreendimento, incorrem sobre esse valor. Eles argumentam ainda que a prática em outros países é uma multa de 100% do valor já pago. O acordo estava próximo, mas os órgãos de defesa do consumidor começaram a questionar a proposta, temendo que a nova regra seja muito desfavorável ao mutuário.
Para o promotor Sidney Rosa, do Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ), o grande problema de uma regra que fixe como multa um percentual do valor do imóvel é que, em alguns casos, isso pode representar até 100% do que já foi pago pelo comprador.
— A crise econômica não atinge apenas as empresas, mas especialmente os consumidores. Não se pode pretender transferir a eles, cuja situação financeira já chegou ao ponto de devolver o imóvel, todo o risco do negócio e os ônus correspondentes.
Especialista em direito imobiliário, o advogado Hamilton Quirino lembra que uma lei nova não poderá retroagir aos contratos anteriores, sendo válida, apenas, a partir do início de sua vigência.
Apesar das dificuldades e da falta de acordo, o setor da construção espera um aquecimento a partir do segundo semestre deste ano. Por essa razão, as incorporadoras já começam a apresentar projetos de novos empreendimentos ao bancos, para avaliar as condições de crédito para a produção. Ter uma regra mais clara de distratos também vai ajudar nesse ponto, segundo Fabrizio Ianelli, superintendente de crédito imobiliário do Santander. A venda das unidades e o andamento da obra são essenciais para o acesso ao crédito e a liberação de recursos — que é feita gradualmente, de acordo com o ritmo da construção e do ritmo de vendas líquidas — já descontando os distratos do empreendimento.
— Quando o distrato sobe, o nível de comercialização não sobe. Então, isso interfere nas aprovações — comentou Ianelli, afirmando que o ano passado foi o mais crítico em distratos, afetando as liberações para as construtoras, que agora tentam reduzir seus estoques.
Para o vice-presidente do Sinduscon, Odair Senra, a redução dos juros, que teve início no fim do ano passado, e a estabilização do índice de desemprego, a partir de meados do ano, devem dar impulso ao mercado imobiliário. Com mais vendas, o nível de distratos pode cair, mas o dirigente defende que alguma regulamentação é necessária para evitar desequilíbrios para o incorporador e para o empreendimento.
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