Metrópoles
Uma lei de 1998 sobre uso do vão livre dos pilotis no Distrito Federal está na mira da Câmara Legislativa. A deputada distrital Júlia Lucy (Novo) protocolou o Projeto de Lei nº 325/2019 a fim de revogar a legislação que destina parte dos prédios residenciais para recreação infantil. A justificativa da parlamentar é dar mais liberdade aos donos de empreendimentos – no entanto, especialistas alertam para a possibilidade de privatização de área que deveria ser pública.
A Lei nº 2.245, de 31 de dezembro de 1998, de autoria do ex-deputado Edimar Pirineus (PSDB), prevê que “fica destinado à recreação infantil um espaço no vão livre dos pilotis dos blocos das quadras residenciais das regiões administrativas”. A norma proíbe nessas áreas a realização de ações estranhas à recreação infantil, jogos de futebol, passeios de bicicleta e “atividades que possam danificar as instalações prediais ou comprometer o sossego dos moradores”.
“Revogar isso abre um precedente para chegar ao ponto que muitos querem: transformar as quadras em condomínios”, opina o arquiteto Cássio Araújo Monteiro. Para ele, o PL da deputada impacta diretamente no tombamento da capital. “Isso pode encaminhar a expansão das cercas. Abre brecha para construírem o que quiserem embaixo dos blocos, como guaritas, salões de festas, etc”, critica.
A parlamentar do Novo reconhece que sua proposta pode, de fato, servir para os prédios instalarem estruturas nos pilotis. E trata isso, contudo, como algo positivo, além de chamar a legislação de inócua. “O empreendedor poderia colocar uma guarita, um alojamento, alguma coisa que já teria de instalar para o funcionamento do prédio”, defende.
Segundo Júlia Lucy, deixar os espaços livres apenas para recreação cria áreas vazias que deixam de gerar renda para o prédio. “Isso se chama custo de oportunidade”, explica, evocando o linguajar de empreendedores.
A distrital afirma ainda que a obrigatoriedade de se ter um lugar para crianças nas estruturas contraria o princípio do livre mercado. “Se o construtor decidir erguer um bloco pensando só em quem não tem filhos, porque deveria ser obrigado a abrir uma área desse tipo?”, questiona.
Felipe Menezes/Metrópoles
Outra preocupação expressa pela parlamentar é a possibilidade de multa, pois, segundo a deputada, são poucos os prédios que cumprem a legislação. “Se o empresário descumpre, apesar de ser inócua, a fiscalização pode aplicar uma sanção. Não é tão simples deixar uma lei vigente no mundo jurídico sem aplicabilidade. É uma armadilha”, frisa.
Outros casos
O urbanista Frederico Borba Andrade critica tanto a norma original quanto o projeto protocolado por Júlia Lucy. “Não sei ao certo como a lei antiga deveria ser aplicada, se era para existir alguma zona de diversão, cercadinho, mas em Brasília já existe o uso livre dos pilotis, independentemente de regras”, esclarece. Ele ainda questiona o motivo de ir atrás de algo do século passado. “Acho delicado mexer com alguma coisa do fundo do baú como essa. Parece mexer com interesses mais profundos.”
Já o professor de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB) Frederico Flósculo aprova a iniciativa da distrital. “É uma lei inócua e esse projeto merece até elogio, porque mostra um tipo de rara seriedade na Câmara, que tem muitas peças de qualidade horrorosa que jamais são criticadas”, ressalta.
Para o docente, na época em que Pirineus surgiu com sua lei, não houve o diálogo adequado com a população. “Até coisas com boas intenções podem resultar em coisa ruim. É um caso de infelicidade legislativa. É um exemplo de tolice política”, critica.
Iphan neutro
O uso das áreas comuns embaixo dos blocos do Plano Piloto já suscitou diversas discussões e desavenças na cidade. Em janeiro de 2017, por exemplo, o Metrópoles noticiou em primeira mão o desabafo de uma mãe do Bloco H da 312 Sul que se revoltou com a síndica de seu prédio. A gestora invocou o regimento interno para restringir o direito dos filhos da mulher de brincarem no pilotis.
Giovanna Bembom/Metrópoles
Em dezembro de 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) obrigou a retirada de cercas de ferro dos blocos residenciais no Cruzeiro, o que gerou reclamações de moradores preocupados com a segurança dos locais. A antiga Agência de Fiscalização (Agefis), recém-convertida em DF Legal, também fez diversas ações de retiradas de grades na Asa Sul, em 2012 e 2013, e a reação da comunidade foi similar.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), responsável por fiscalizar o cumprimento do tombamento de Brasília, alegou que não cabe ao órgão “avaliar as iniciativas legislativas de deputados distritais”. “Nossa atuação ocorre preventivamente quando em situações de ameaça concreta à preservação de bens do patrimônio cultural brasileiro”, complementou, por meio de nota.
O Iphan, contudo, rechaça a ideia de novas estruturas no térreo dos prédios do perímetro tombado, mesmo no lugar onde deveria haver recreação. O órgão fez referência à Portaria nº 166/2016, que delimita o máximo de 30% da área dos pilotis “para portarias, zeladorias, cômodos técnicos e equipamentos de uso coletivo do condomínio.”