Flávia Maia
Correio Braziliense
Projetado para uma população cinco vezes menor, o reservatório nunca esteve em um nível tão baixo, obrigando a adoção do racionamento
A conta da urbanização acelerada e da expansão sem o devido planejamento chegou aos moradores do Distrito Federal. As 15 regiões que sofrem com o atual racionamento de água na capital do país foram as que mais cresceram nos últimos 30 anos — uma expansão feita, muitas vezes, por políticas habitacionais pouco eficientes, por grilagem ou por mudança nos planos de ordenamento previstos. São histórias de ocupação como as de Vicente Pires, Sol Nascente e Águas Claras. O resultado é mais gente vivendo no mesmo espaço e retirando maior quantidade de água de um reservatório projetado para uma população cinco vezes inferior à atual. O Rio Descoberto abastece 65% da população, cerca de 1,8 milhão de pessoas.
O preço da escassez vem sendo cobrado do consumidor. Com mais gente consumindo o líquido, a oferta está menor e o preço da água potável, mais alto. Desde 2010, a Companhia de Saneamento do DF (Caesb) vem subindo sistematicamente a tarifa para consumidores residenciais. Em seis anos, o valor aumentou 79,8%. Isso sem contar a taxa extra cobrada para consumos acima de 10 mil litros mensais, desde o início da crise hídrica.
Estudos feitos pelo Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica da Universidade de Brasília (UnB) mostram que os vetores de crescimento do DF coincidem com as regiões abastecidas pelo Descoberto, o que demonstra que, embora a expansão urbana não seja o único fator causador da crise hídrica, tem participação na pressão sobre o reservatório. “O crescimento ocorre, principalmente, no eixo sudoeste, que compreende Ceilândia, Samambaia, Águas Claras, Vicente Pires e Guará. Isso tudo tem um impacto imenso no abastecimento de água. Em contrapartida, o padrão dos índices pluviométricos cai. Não quero ser catastrófico, mas não vejo melhora a curto prazo”, analisa Benny Schvarsberg, professor de urbanismo e planejamento urbano da UnB.
A população do DF aumenta a uma média de 60 mil pessoas por ano, contando as migrações e os nascidos na capital. “A água sempre foi um problema no DF. Por aqui, não há rios caudalosos, por isso, é preciso fazer o reservatório, Tanto que, em 1970, foi preciso construir o Descoberto”, comenta Oscar Cordeiro Netto, professor da UnB. Ele lembra que, no passado, a adutora da Caesb que ligava Ceilândia ao Gama foi um vetor de crescimento da região. “As cidades cresciam por ali porque havia uma infraestrutura. Uma boa solução de engenharia, entretanto, hoje, tornou-se insuficiente”, complementa.
A infraestrutura, como a rede da Caesb e o metrô, além da proximidade de estradas que levam a importantes eixos econômicos, como as BRs 040, 060 e 070, são apontados como possíveis motivos para o crescimento do DF ter se direcionado para a região abastecida pelo rio Descoberto. As políticas habitacionais, como as promovidas pelo governo Roriz, de doação de lote, também contribuíram para o aumento de pessoas nessas cidades.
A estrutura polinucleada de cidades satélites, prevista por Lucio Costa, vem desaparecendo com o tempo e sendo substituída por conurbações. Cidades como Ceilândia, Samambaia e Taguatinga, antes separadas, agora se encontram. Na opinião de especialistas, o adensamento em si não é o problema, mas, sim, a ocupação irregular e o fato de esse fenômeno parecer distante de acabar no DF.
Irregularidades
Dados da Companhia de Planejamento do DF (Codeplan) mostram que muitas das cidades atingidas pelo racionamento são áreas com grande concentração de terrenos não regularizados. Enquanto a média do DF é de 22% de domicílios irregulares, em algumas cidades que passam pelo rodízio, esse índice chega a ser quatro vezes maior — em Vicente Pires, 99,5% da região ainda não têm documentação, entre terrenos próprios, alugados ou cedidos. Em Santa Maria, são 29,17% e no Recanto das Emas, 22,52%.
Levantamento feito por auditores da Agência de Fiscalização do DF (Agefis) mostra que regiões como Ceilândia, Taguatinga e Samambaia continuam alvo de invasões recentes e demandam especial atenção. “A máquina de crescimento não pode ser interrompida apenas pelo desejo de um governante, ela vai continuar. O DF não é mais um eldorado de emprego, como foi no passado, mas ainda é foco de atração e precisa de planejamento”, defende o urbanista Benny.
Sem planejamento
Para o geógrafo Aldo Paviani, a capital acabou atraindo mais gente que o necessário e passou a ter dificuldades para contornar o deficit habitacional, principalmente de moradias populares, o que pode explicar a expansão desordenada nas cidades abastecidas pelo Descoberto. “Como pode uma cidade planejada ter falta de água? Se a gente observar a ocupação no DF, sempre ocorreu de improviso e nunca houve uma grande política de habitação popular.” Paviani cita favelas que existiam no Núcleo Bandeirante na década de 1970 e foram transferidas para Ceilândia. “Colocaram as pessoas lá e não tinha água nem esgoto. Apenas uma bica, na qual as mulheres lavavam as roupas e buscavam a água para o consumo”, conta.
De acordo com especialistas, o efeito da ocupação sem planejamento reflete o fato de a infraestrutura não conseguir acompanhar a expansão urbana. Com isso, o uso da água aumenta, mas as obras de nova captação não chegam a tempo. No caso das ocupações irregulares, o problema está na impermeabilização do solo. “De 25% a 30% da água da chuva infiltra e recarrega o lençol freático. Se há impermeabilização, esse ciclo hidrológico é interrompido e traz prejuízos”, explica Rafael Mello, superintendente de Recursos Hídricos da Agência Nacional de Águas do DF (Adasa).
Dessa forma, para Mateus Oliveira, advogado especialista em direito urbanístico, o DF precisa aprovar a Lei de Permeabilização do Solo. “Essa lei obriga os empreendimentos imobiliários a criarem mecanismos de reúso da água da chuva e também possibilita que as águas da chuva sejam infiltradas mecanicamente nos lençóis freáticos.” De acordo com o Executivo, o texto está pronto e deve ser enviado para a Câmara Legislativa.